Na Malásia, uma gota de água é capaz de causar um maremoto de emoções.

A essa altura, muitos já devem estar sabendo das igrejas que foram profanadas no país. Entre a última sexta e este domingo, quatro templos no subúrbio da capital e um na cidade de Taiping foram incendiados com coquetéis molotov. Uma igreja em Malaca, antiga colônia portuguesa, foi pichada com tinta preta, assim como o carro de um padre que mora em Penang. Em um internato em Taiping também foram encontrados coquetéis que não estouraram, possivelmente dirigidos à igreja que fica ao lado. Em Sabah, Malásia insular, onde está a maioria malaia cristã do país, um templo foi atacado com pedras.

Pensar que toda essa violência religiosa tem um fundo lingüístico é, no mínimo, estranho. Como pode o uso ou não de um vocábulo causar tanta indignação e revolta? Mas os homens... ah, os homens. Qualquer motivo vira desculpa para demonstrações de poder.

Antes do Islã e dos conquistadores europeus, a Malásia era composta por diversos tribos e diversas etnias. Antes da imposição do islamismo e de um determinado idioma, havia o Bahasa Melayu. Na língua nativa, não existe nome próprio para Deus - como hindus ou gregos pagãos nomeiam. Em malaio, a palavra Deus é 'Allah'.

As conquistas vieram e moldaram esse país ao gosto de cada dominador. Na parte insular, as coisas sempre foram um pouco mais difíceis e até hoje é possível encontrar o modo tribal intocado. Lá, porém, muitos malasianos se converteram ao cristianismo; logo, como o inglês é pouquíssimo utilizado, a bíblia é editada em malaio. Como o Deus cristão não tem nome próprio e somente é chamado de Deus, a bíblia malaia chama-o de Allah.

Viu só? Não há confusão. O problema começa quando o governo muçulmano, em um país dessecularizado cuja maioria é muçulmana, sente-se ofendido pelo uso da palavra Deus - em malaio - por pessoas que não acreditam em Allah. Mas Allah não é Deus?!?

Não para o governo. 'The Harald', o jornal católico editado em malaio, teve suas atividades suspensas por chamar Deus de Allah. A Suprema Corte, recentemente, deu ganho de causa ao jornal, em uma ação judicial que se estendia há três anos. Ele pôde ser reaberto e foi autorizado a usar os sinônimos, pois não há, como já disse, outro modo de se referir ao vocábulo 'Deus' em malaio. O governo chiou e entrou com uma apelação. Allah é o Deus só dos muçulmanos; qualquer outra pessoa não-muçulmana, ao utilizar essa palavra, cai em blasfêmia.

Daí, tudo se seguiu foram reuniões e protestos muçulmanos, culminando nos ataques. O governo condenou as ações, mas não impediria as manifestações - pois depende dos votos da maioria islã para perpetrar-se no poder. Paradoxalmente, o atual mandato tem como lema a frase 'One Malaysia', buscando também trazer todas as outras etnias/religiões para as discussões políticas - algo bem difícil em um país onde ser muçulmano te traz até vantagens financeiras e assistenciais. Onde hindus, quando protestam, são controlados a tiros. Onde um chinês com a maior nota perde a vaga na universidade pública para um malaio, porque este candidata-se pelo sistema de cotas (mais da metade dos lugares são destinados a muçulmanos). Chega a ser cômico, pois com tantas vantagens, os malaios ainda reclamam que são perseguidos. Lembro-me da piada do negro que, ao ser-lhe negado alguma coisa, pensa que o fizeram só por conta de sua cor. E aqui, os muçulmanos nem são minoria: 60% da população reza cinco vezes ao dia.

As autoridades visitaram algumas das igrejas queimadas neste domingo. Ofereceram ajuda financeira para reconstrução do templo e até participaram de uma comunhão com outros líderes religiosos, tentando simbolizar uma união. Mas os cristãos não querem isso. Eles só querem segurança e a garantia constitucional da liberdade de culto. O Corão ensina que qualquer lugar onde Deus seja venerado é digno de proteção; assim, a maioria dos malaios condenou os ataques e estão tratando o 'grande problema vocabular' como algo pequeno - assim li em um recente tweet, de um dos seguidores da ONG: "Se os cristãos pararem de chamar Deus de Allah, os muçulmanos vão parar de dizer Nabi Isa ao falarem de Jesus?". Grupos insurgentes é que são o verdadeiro problema e estes o governo parece não querer controlar.

O Primeiro-Ministro divulgou hoje que um plano de tolerância religiosa entrará em vigor após tudo ser acertado entre os líderes das diversas religiões. Mesmo assim, 15 mil bíblias já foram confiscadas por conta do 'erro' linguístico. Mesmo assim, qualquer um é super bem-vindo a se tornar muçulmano - mas os malaios são proibidos de abandonar o Islã. Ah, e se você for um indiano convertido, todos referir-se-ão a você com a expressão 'Mamak', o que é um tanto pejorativa. Se nós somos de cor diferentes, mas adoramos o mesmo Deus, porque eu recebo um nome diferente do seu?

A aparente calmaria da Malásia reside no fato de que cada etnia sabe muito bem até onde ir para não alternar o frágil equilíbrio entre as raças. Na verdade, não há integração e isso é claro na divisão da cidade e nos estereótipos que aqui, já são verdade há anos. A guerra civil também começou por um motivo bobo, porém superestimado por grupos religiosos.

Sendo Deus, God ou Allah, não importa. Garanto que Ele não dá a mínima para essas frivolidades, assim como nunca deve ter enviado um de seus anjos, profetas ou ele mesmo em carne para dizer que essa palavra ou aquela é impura na boca dos 'infiéis'.

Ah, homens... o problema reside em vocês.

Aqui, Flickr do The Edge Malaysia, com algumas fotos das manifestações malaias.


:: Em KL, 02h43, já de segunda.