Buka Puasa

Cheguei na Malásia na véspera do início do Ramadã, a data mais especial para os muçulmanos. No 9º mês do calendário islâmico (que segue as fases da lua), acontece a prática do jejum, com orações mais intensas e caridade. Acredita-se que ao fim desse período, a fé está renovada, por meio do crescimento espiritual. Geralmente, o primeiro jejum de um muçulmano acontece quando ele atinge a puberdade, e a estréia é tratada como um rito de passagem - o mocinho ou a mocinha já estão prontos para a vida adulta. Porém, meus amigos muçulmanos me contaram que muitos não esperam esse tempo, e começam a jejuar entre 6 e 8 anos: "a partir do momento que você entende o porquê da provação, você já está preparado". Todos são obrigados a praticar, exceto as grávidas, os idosos e os doentes; mesmo assim, os mais religiosos ignoram essas condições e praticam o fasting (termo em inglês para jejum).

O jejum é feito durante todo o mês, da alvorada ao pôr-do-sol (aqui na Malásia, isso quer dizer das 5h15 da manhã às 19h15) e não trata somente de comida. Qualquer prazer da vida deve ser suspenso durante essas horas, e isso inclui cigarros e sexo. A abstinência é também em pensamento e em atos, pois isso faz parte da prática disciplinar e da doutrina moral dos muçulmanos. A maioria também se priva de beber água e alguns mais radicais nem engolem a própria saliva. Com o início do crepúsculo, acontece o Iftar, palavra em árabe que significa a quebra do jejum. Em Bahasa Melayu, diz-se Buka Puasa - na tradução literal, 'casa aberta', e vocês já vão entender o porquê.

Em uma comparação grosseira, o Natal é para os cristãos o que o Ramadã significa para os muçulmanos - é mais importante, inclusive, do que o dia do nascimento do profeta. As orações são mais intensas e o fim do jejum diário é celebrado com música e fogos de artifício. As casas, escritórios e os shoppings enfeitam-se com luzinhas, tecidos e bonecos; há apresentações culturais, comerciais de boas festas, festivais de comida típica e, obviamente, promoções. As lojas liquidam tudo, e os restaurantes oferecem buffets 'all-you-can-eat' a partir das 19h. Há também barraquinhas de comida malaia estrategicamente montadas em toda a cidade, caso não dê para você chegar em casa a tempo de cozinhar antes da reza.

O escritório perto do Hari Raya (foto do meu celular).
 
Cartões com orações e votos de prosperidade (foto do meu celular).

Eu e Habiba (foto do meu celular).

Mas, se você não quiser gastar horrores, pode ir a um Buka Puasa. Ao anoitecer, os muçulmanos preparam grandes banquetes para celebrar o dia e as bençãos que receberam. As pessoas saem às ruas para visitar amigos, parentes ou até mesmo entrar na casa de desconhecidos e celebrar a união. As portas estão todas abertas, e qualquer um que entrar será bem-vindo, até mesmo estrangeiros (daí que vem o termo 'casa aberta'). Você come à vontade, e ainda recebe abraços e sorrisos de gratidão.

Cada empresa organiza seu Buka Puasa oficial e o do escritório em que trabalho foi na última terça-feira antes do Hari Raya, dia 15. Pude perceber como esse mês é importante para eles: os muçulmanos foram autorizados a sair mais cedo e voltaram com suas famílias e suas melhores roupas. Muitos homens utilizavam o traje típico malaio, o baju malayo. É como se fosse o dia da ceia de Natal, à exceção de que nós só temos uma por ano, e eles têm 30 seguidas.

  Confraternizando durante o Buka Puasa
Seguindo o Alcorão, o jejum é quebrado com algo doce - depois de tanto tempo sem receber energia, o corpo precisa de açúcar para acelerar o metabolismo. Assim, às 19h15, os doces foram liberados. O mais tradicional deles, tâmaras - mas também havia pudim de frutas, creamy puffs, curry puffs (algo como donuts recheados de creme de baunilha e galinha com curry), chocolates e doces tipicamente malaios: feitos de amido de arroz, com recheio de coco queimado, servidos em folha de bananeira.

 
A famigerada mesa dos doces!

Às 19h30, os homens retiraram-se para fazer a oração (os espaços públicos e empresas daqui têm espaços reservados às rezas diárias, que são cinco). Em sinal de respeito, nenhuma outra pessoa praticante de outra religião os acompanhou; por isso, não tenho fotos. Mas a entoação é muito bonita. Depois de 15 minutos, eles estavam de volta. Todos se cumprimentam e fazem votos de fé, enquanto servem o jantar. Daí em diante, é só alegria. As pessoas reunem-se em rodas para conversar, enquanto agradecem pelo dia. Nesse dia, o menu teve arroz branco, arroz com ervas, melancia, salada de pepino com gergelim e abacaxi, carneiro ao molho e frango agridoce. Tudo bem apimentado, ao gosto do Sudeste Asiático. Ah, tb teve nan (um pão característico dos indianos) com molho de frango - e sem pimenta. Foi o que me salvou - afinal, não comer em um Buka Puasa é quase uma ofensa (de qualquer jeito, me perguntaram se eu como pouco sempre ou se eu estava com vergonha de avançar sobre as travessas rs). Para beber, suco de rosas. Sim, de rosas!! É uma bebida malaia típica, e o pessoal prefere isso às frutas 'tradicionais': laranja, manga, goiaba... Tanto que, em qualquer supermercado, você encontra galões de 5 litros para vender. Sinceramente? Tem gosto de amaciante... argh! Mas eles bebem de gole.

Na Malásia, como os malaios.
  Todo mundo feliz e saltitante!
 Mais fotos aqui.

Ao fim do mês do Ramadã, ocorre o Eld al Fitr, o 'banquete do término do jejum', marcado pela entrada na lua nova. Há um feriado de três dias consecutivos, com comida, orações, troca de presentes e agradecimentos a Deus. Amigos e familiares congregam-se. Em Bahasa, a expressão usada é Hari Raya ('Dia da celebração'), e Selamat Hari Raya Aldilfitri significa 'Bom festival do dia da celebração'. As músicas dessa época cantam essa frase e também Balik Kampung, que quer dizer 'volta ao campo', já que muitos deixam a cidade grande para reunirem-se com a família na área rural. Ouvi até música de Hari Raya com a mesma melodia de Jingle Bells!!!

A minha celebração começou na sexta (18) ,às 13h, e terminou na terça-feira (22). Para os muçulmanos, começa no anoitecer da quinta (17) e vai até a outra quarta (23). Aproveitando a folga, fui passar frio e tomar chá em Cameron Highlands.

:: Em KL, 23h19.
:: Ouvindo: O Rappa, acústico.
 

O carro colorido da Lotus

A imprensa internacional anunciou recentemente a volta da Lotus à Fórmula 1. Para os brasileiros, isso certamente traz boas lembranças. Mas eu não estou aqui para falar disso, e sim do carro colorido da escuderia. Essa coisa linda aí embaixo.


No Brasil, pelo que pude notar, a comemoração é relevante, mas o porquê de tanta cor e tantos logotipos inéditos foi deixado de lado. A Lotus voltou à Fórmula 1 em parceria com o governo malasiano, a Proton e a Naza, os grandes conglomerados automotivos daqui - as cores fazem menção à bandeira do país. O anúncio foi feito pelo próprio Primeiro-Ministro, mas sem citar números relativos ao investimento.

Me impressiona o fato de eu só ter lido essa versão da matéria em jornais locais. O The Star, distribuído gratuitamente na estação central de Kuala Lumpur, traz uma reportagem completa. O time chamar-se-á 1Malaysia (em Bahasa: Satu Malaysia), o slogan do governo para este ano. Sua equipe será composta de aproximadamente 200 pessoas e os comentários de rua já sugerem que os corredores malaios da Fórmula A1 serão os escolhidos para pilotar o carro. A posição oficial, porém, sai dia 31 de outubro.

A equipe será a primeira a estabelecer-se fora da Europa, no Circuito Internacional de Sepang, e toda a tecnologia e design são nacionais. O nome da Lotus foi escolhido pela sua credibilidade internacional - ah, e também é bom dizer que ela detém uma parte do capital da Proton.

Agora, vamos a alguns nomes de peso: o time será gerenciado pelo ex-diretor técnico da Renault, Mike Gascoyne. O presidente será Tony Fernandes, dono da AirAsia (a maior empresa de viagens low-cost do mundo), tendo ainda como acionistas o CEO do Naza Group e o próprio governo da Malásia. Espera-se que isso contribua com o avanço e desenvolvimento do país na arena internacional.

Hoje, a F1 foi pauta de várias conversas no escritório. Uns a favor do incentivo federal, outros nem tanto. Mas todos concordaram em uma coisa: esse carro ficou MUITO estranho. Mesmo. Como a própria Lotus disse que o possante fica pronto em fevereiro (a linha de produção começa na Europa e termina na Ásia), esperamos que eles escolham outra pintura. Algo menos carnavalesco, talvez. ; )

:: Em KL, 01:32h, já de quinta.
:: Ouvindo: A-Ha, Summer Moved On.

"Um lindo país que fica entre a Tailândia e Cingapura"

"A Malásia é um lindo país que fica entre a Tailândia e Cingapura". Começo com a frase de umas das pessoas mais interessantes que já conheci por aqui. Adeline é mais brasileira do que chinesa, a começar pelo nome. Namora há cinco anos um cara também gente boa que apareceu aqui por acaso. Xinga em português, adora nossas expressões ("elas fazem sentido, como é que não pensei nisso antes??") e foi Miss Malásia 2006. Veja o videozinho promocional dela no Miss Mundo do mesmo ano aqui.

Apesar de toda essa pompa, Adeline é tão simples e humilde que certamente passaria despercebida em qualquer outro lugar. Mas a hospitalidade e o carinho com que me trata é característico do povo malasiano. Parece que existe uma aura coletiva de retribuição aos estrangeiros que aqui estão. Os locais são muito prestativos aos mat salleh, como eles chamam-nos em Bahasa Melayu, a língua nativa. Significa 'homem branco' e vem de 'mad sailor', da época da colonização inglesa. Com essa adaptação, dá pra imaginar o que os europeus fizeram por aqui em séculos passados... ainda bem que os motivos pelos quais o país é um atrativo mudaram. Ao notar um estrangeiro, é como se soubessem que aqui estamos porque fazemos parte de algo grande. Eles encaram e observam, mas talvez com um ar de curiosidade e não para constranger. Alguns até param para dizer "Oi, bem-vindo à Malásia!" : )

Dividida pelo Mar do Sul da China, a Málásia é composta por uma parte peninsular, algumas ilhas e um pedaço da Ilha de Bornéu. Em 329.847km², espremem-se quase 28 milhões de pessoas. E eu vivo na cidade mais populosa, Kuala Lumpur. Praias de areia branca e água azul, plantações de chá e morangos a 1500m de altura, além da beleza dos arranha-céus, trazem a esse cantinho do planeta o título de país mais desenvolvido do Sudeste Asiático: o moderno e o tradicional convivem e trabalham lado a lado. Porem, como todo país em desenvolvimento, a área urbana cosmopolita mascara o interior pobre e arcaico. São dois mundos dentro de um terceiro, ainda com muito a explorar.

O sistema político é algo único: a Malásia possui 13 estados, sendo nove governados por sultões. Estes se revezam no poder a cada cinco anos - fazendo do país uma monarquia constitucional. Os outros quatro estados possuem governadores titulares, que não entram na conta. Segundo o site do Governo, aqui também é uma democracia parlamentar, onde o Primeiro Ministro é escolhido pelo único partido existente (entenderam, né? Falo mais nada... o Irã também é "democrático").

A geografia do local favoreceu as ondas colonizadoras britânicas, pois a península era vista como um hub entre as duas metades do mundo, além de ter favorecido a exploração da Oceania. Houve também colônias portuguesas no litoral oeste, em Melaca. Até hoje, os estrangeiros constituem quase 10% da população total. A maior parte dos residentes é malaia (54%), seguidos pelos malasianos de origem chinesa (25%) e pelos de origem indiana (11%). A religião oficial é o islamismo, mas a Constituição permite outras formas de expressão religiosa.

Atenção para a licença poética. O adjetivo pátrio da Malásia, em português, é malaio. Aqui, é Malaysian (malasiano). E essa diferença é importantíssima para se entender a sociedade. Aqui, malaio é aquele nasce muçulmano, por definição constitucional. Ou seja: se você não nasceu em uma família de chineses ou de indianos, você não tem escolha. Malay são os muçulmanos; Malaysian, todo o resto. É por isso que uso a tradução livre aqui no blog. Aos viajantes de plantão: favor não se esquecerem desse detalhe, pois aqui isso pode dar problema. Não chame um chinês ou indiano de Malay, jamais! O equilíbrio e a tolerância entre as raças ainda é muito frágil, já que a Malásia só tem 52 anos de independência. Esses dois últimos povos, ao serem indagados, preferem afirmar-se na origem de seus povos do que na terra em que vivem. A identidade nacional ainda está em construção.

Ah, sim. É claro que nem tudo são flores, a Malásia também tem defeitos. Mas isso é conversa pra outra hora. Assim como a vida exótica e pulsante de Kuala Lumpur merece vários posts. Enquanto isso, fiquem com algumas fotos das Petronas Towers, o cartão postal mais lembrado (e visitado) da capital.

:: Em KL, 21h42.
:: Ouvindo: a reza da Mesquita, dois quarteirões abaixo.

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Cá estou eu de novo. Sabe, eu já pertenci a esse mundo dos blogs várias vezes. E ainda nem tinham concebido esse nome bonito, mas que só serve para segregar os que se acham bons dos que têm certeza que são bons (e por isso, criaram a blogosfera). Ainda não existia Flickr, Twitter, Orkut, nem scripts. Era um mundo tão pacífico, cheio de linguagem HTML e hexadecimais feitos à base de muita paciência no bloco de notas. A internet me acompanha desde muito cedo e isso certamente influenciou minha cultura, minhas amizades e pensamentos. Já tentei me desligar, mas, felizmente, não consegui. A rede também me trouxe novidades, descobertas, ofertas de estudo e de trabalho. E é por isso que voltei.

Não que minha mão já não se agüentava de tanta agonia. Era chato só produzir artigos científicos, relatórios técnicos e menções (vida de servidor público!). Ex-chefe, se você estiver lendo isto, saiba que eu gostava do meu trabalho. Só me consumia umas 14 horas do dia, mas tudo bem. Minha cabecinha não prestava pra mais nada depois disso.

As obrigações me fizeram desistir de dois blogs anteriores. Meus cadernos, blocos e rabiscos do dia-a-dia acabaram esquecidos no meio do estresse. Ah, mas como fazia falta... Daí, já que agora eu arrisquei tudo para estar aqui, decidi retomar velhos hábitos para ajudar na adaptação. Mas não vou fazer dieta, passar fome, puxar peso ou suar horrores no squash. Uma caminhada básica, fazer ioga, nadar e escrever, isso sim. Porque preciso.

Este blog é o meu mundo particular, meu espaço pra lidar com minhas vozes internas e os desafios que me aguardam. A Malásia, definitivamente, foi o meu pulo do gato no meu ano do Boi. Sou uma pessoa abençoada e muito agradecida por tudo que tem acontecido nos últimos meses. É como se eu soubesse que isso já me esperava, mas eu precisava amadurecer para receber o presente. Aconteceu no momento certo.

As postagens e os comentários seguem o horário oficial de Brasília. Algumas vezes, pode acontecer de os textos não terem sentido algum; será só eu fazendo algum tipo de faxina. Considere esta incursão, portanto, uma dupla jornada: a Ásia pelas lentes dos meus óculos e eu mesma pelas suas lentes. Se você não ficar satisfeito com o que encontrar por aqui, eu não dou a mínima. Eu não preciso de 45 mil seguidores, só preciso expor o que eu penso.

:: Em KL, 01h08, já de terça.
:: Ouvindo: Alejandro Sanz.