Historical Melaka

Pense em um porto para o qual sopram ventos tranquilos, um lugar onde se possa descansar das últimas tempestades. Pense também que esse porto fique exatamente entre a Índia e a China e, logo, o comércio na região também é valorizado. Pense que, durante 300 anos, vários povos tentaram controlar o local e cada um deles deixou sua marca na arquitetura, na culinária, no modo de vida e nos traços das pessoas. Isso é Melaka, uma cidadezinha a 150km de Kuala Lumpur - quem a controlava era dono dos Estreitos de Malacca, passagem garantida para as mercadorias e riquezas da Ásia. Portugueses, holandeses, chineses e ingleses tiveram sua fase - tanta riqueza histórica e cultural garantiu-lhe ser um dos Patrimônios da Humanidade, desde 2008.

No último sábado, eu, Roxanne (a estagiária de Hong Kong) e suas colegas de apartamento fomos parar lá, para uma day trip. Tirando os imprevistos dignos de um "Malaysia boleh", a viagem foi muito boa e definitivamente voltarei para um fim de semana prolongado: Malacca transpira História.

Ninguém sabe ao certo como a cidade surgiu, mas a lenda conta que há uns 600 anos, um príncipe de Sumatra, ao fazer uma viagem pela região, pousou ali. Deslumbrado com a posição estratégica e com a tranquilidade da terra, resolveu ficar. Melaka era o nome da árvore que lhe dava sombra e daí tudo começou a acontecer do outro lado do estreito indonésio. Muitos dizem que 'melaka' descende de uma outra palavra árabe que significa 'mercado' - mais um indício de que a região é há muito tempo conhecida.

Após o estabelecimento da província, mercadores chineses passaram a comercializar seda e porcelana com os malaios (ainda não muçulmanos, naquela época), antes da chegada dos europeus. Como as chinesas eram proibidas de deixar o país naquela época, seus conterrâneos não tinham outra opção a não ser constituir família com as locais: indígenas, javanesas, balinesas... daí surgiu a primeira mistura cultural da cidade, os Baba-Nyonyas - expressão utilizada para designar 'senhor' e 'senhora' em dialetos locais. Essa comunidade desenvolveu língua, arte, culinária e arquitetura próprias e podem ser facilmente reconhecidos nas ruas de Malacca e Penang. Bem-educados, falam malaio, baba e chinês, podem ser cristãos, budistas ou muçulmanos e sempre - SEMPRE - serão empresários ricos e de renome (mais do que os chineses malasianos, até).

Interior de uma casa Baba-Nyonya em Melaka. Hoje, o andar térreo abriga um restaurante e os donos moram no andar de cima.

A pia. =)

Os primeiros europeus a chegar a Melaka foram os portugueses, em 1511, fazendo de lá mais uma parada em sua rota de especiarias. Foram eles quem trouxeram os temperos e as pimentas da Índia para o Sudeste Asiático, além de aumentarem o comércio com a China e as ilhas da Indonésia. Uma fortaleza foi erguida e lá dentro havia dois palácios, um castelo, uma sala de reuniões e cinco igrejas. "A Famosa" controlou o comércio de seda e porcelana da China, têxteis da Índia, cânfora de Bornéu, ouro e pimenta de Sumatra, estanho da península malaia, sândalo de Timor e noz-moscada e cravinho das Ilhas Moluccas.

Igreja de São Paulo no topo da montanha, cercada pelo forte. À esquerda, o Rio Melaka (Francis Valentijn, 1726)

Em 1641, após uma resistência de sete meses, o forte foi tomado pelos holandeses. Estes mantiveram a arquitetura, mas reformaram a casa: as construções ainda são de um vermelho forte, mas os brasões portugueses deram lugar aos da coroa laranja. Alguns canais também foram abertos. Acontece que, no século XVII, Melaka já não era tão importante assim na rota das especiarias e com a tomada napoleônica na Europa, a Holanda estava muito mais preocupada com as suas terras baixas lá do que em outro lugar. Aproveitando-se disso, a Companhia das Índias Orientais, empresa britânica, ocupou Malacca em 1795 - unindo a península malaia sobre o dominío dos ingleses. Foi aí que decidiram destruir todas as construções militares já existentes e erguer outras segundo a arquitetura Tudor. Atualmente, as ruínas da Fortaleza de Malacca e a entrada do forte A Famosa são os pontos mais visitados pelos turistas.

Fortaleza de Melaka
 
Entrada dA Famosa

Arquitetura portuguesa e coloração holandesa

Melaka é um ótimo lugar para se divertir e aprender História ao mesmo tempo. Seus becos e construções me lembram muito as cidades coloniais da minha região - e sempre fico impressionada ao imaginar como seria viver a época das grandes navegações. Tantos desafios, mas os europeus chegaram tão longe! Quando eu iria pensar que usaria meu idioma pátrio para conversar com um asiático que nunca saiu deste lado do mundo? Uma noite na praça portuguesa ajudou a controlar a saudade da atmosfera interioriana e da comida de casa. Os locais descendentes dos lusos são chamados de Kristang (cristão, em malaio). Fiquei sabendo que lá também tem festa junina esse mês e até vi carro de boi!
 
Infelizmente, os malaios não dão o devido valor à cidade e nem à sua história. Apesar de Patrimônio da Humanidade, a maior parte de seus feitos não foram realizados por esse grupo étnico - daí, o goveno não se importa. Pode-se ver a modernidade avançando sobre o centro velho de Melaka, carros transitando em áreas de ruínas e não há controle do fluxo de pessoas em cada ponto histórico. Uma pena - mas em um país onde a maioria muçulmana muda os livros didáticos e ensina que eles sempre estiveram nesta terra, tudo é possível. Uma maioria planejada, logicamente.

Melaka e seu estreito marcaram o início da globalização no Sudeste Asiático.  Famosos, até estrelaram o último "Alice no País das Maravilhas"!

Casa 3 em 1: arquitetura portuguesa e design sino-holandês

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